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"SAUDADES DE UM PUNHAL": ENTRE O SENSÍVEL E O CATÁRTICO


Publicação de Carol D Utra Vaz

Parte do livro de Leila Danziger

A palavra mimese tem origem do grego mímeses, que significa imitação. A sua definição, segundo o Dicionário Aurélio Buarque de Holanda, consiste em: “1. E. Ling. Figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outrem, 2.Liter. Imitação ou representação do real na arte literária, ou seja, a recriação da realidade.”[1]

Para Platão, o mundo sensível, ou seja, o mundo em que vivemos, cria cópias materiais imperfeitas das ideias perfeitas, que representariam um afastamento do indivíduo da verdade ou então um aprisionamento, e a abstração racional seria o caminho para se chegar à ideia puramente. Em Aristóteles, a imitação através da arte, proporciona uma gama de possibilidades e narrativas, onde cada ser humano pode se imaginar nessa outra realidade, que levaria a um processo de purificação, intitulado como – catarse.

Leila Danziger é professora do Instituto de Artes da UERJ, e também, artista, pesquisadora e poeta. Possui formação em artes plásticas pelo Institut d'Arts Visuels Orléans, na França, Residência em Berlim concedida pela bolsa Multiplikatoren, do Goethe Institut. É mestre e doutora em História Social da Cultura pela PUC-Rio.[2] Seus trabalhos permeiam a experiência e reconstrução da memória de nossa história. Leila possui uma editora chamada “Armários Azuis”, que “(...)se destina a publicações realizadas a partir de documentos de arquivos (pessoais, familiares, geracionais, nacionais, transnacionais) que contenham vestígios de esperanças extraviadas ou de violências que aguardem alguma forma de reparação.”[3] Sua primeira publicação – “Saudades de um Punhal: Carol D’Utra Vaz” – foi materializada a partir de uma promessa: “(...) a de recolher vestígios da escrita de Carol D’Utra Vaz na internet.”[4]

Leila e Carol se correspondiam virtualmente, compartilhavam afinidades e blogs de escrita. E esse atravessamento na vida de ambas, é descrito por Leila em “Saudades de um punhal”:

“Em abril de 2009, ao acessar o blog, encontrei um comentário sobre um texto que eu havia publicado sobre meu pai. Dias depois, a mesma pessoa retornou. Deixou outros dois comentários. Conversamos sobre poesia (Paul Celan, Yehuda Amichai), barcos em mares que não existem, xales de oração, vestidos que se animam com o vento, djellabas. Brinquei que assim talvez passasse a levar meu suposto blog a sério. Dia sim, dia não, passei a visitá-la também e ver o que escrevia em Saudades de um punhal, seu blog mantido com regularidade, cujo título fazia alusão a um conto de Robert Walser ('Sehnsucht nach einem Dolch', 1917). Certo dia, ao visitar seu blog, não encontrei nenhuma nova postagem, mas um comentário trazia a notícia de sua morte, ocorrida em São Paulo, em uma madrugada fria de sábado, 30 de maio de 2009. Não sei mais o que se passava no mundo naquele dia, mas em minha agenda, encontrei a anotação: ‘abrir avenidas pela casa’.” (DANZIGER, 2019, p.7-8)

O diálogo com o conceito de mimeses pode ser construído a partir de dois pontos de vista – o primeiro é o mundo virtual de Carol D’Utra Vaz, e o segundo, a obra/livro enquanto idealizada por Leila Danziger.

Poderia o mundo virtual de Carol D’Utra Vaz ser contextualizado com a filosofia platônica? E seguindo por essa lógica, é possível então caracterizar a escrita de Carol D’Utra como uma tentativa de representação da verdade no mundo ideias, mas ainda assim, as postagens seriam cópias materiais imperfeitas das ideias, ou seja, seria o dualismo do mundo sensível e o mundo inteligível de Platão. Em A República, Platão recorre ao diálogo para expor a sua filosofia, e um deles é o diálogo com Sócrates: o Mito da Caverna. E não raro, as redes sociais são contextualizadas com a Alegoria da Caverna, que ao dialogar com a “Sociedade do Espetáculo”[5] de Guy Debord, ratifica ainda mais o afastamento da verdade, onde o que é visto são apenas projeções da realidade.

E o segundo ponto de vista – a obra/livro idealizada por Leila Danziger – poderia dialogar com a mimese aristotélica. Assim, a artista, ao organizar os vestígios de outra pessoa, está construindo uma realidade que pode servir de identificação para outros indivíduos. Aristóteles valoriza a realidade material e defende a teoria da arte proporcionar um efeito catártico, evidenciado nessa hipótese, pela morte.

Portanto, poderíamos inferir que Leila Danziger, estaria proporcionando através da edição e apropriação dos escritos fascinantes de Carol D’utra Vaz, uma nova conotação para sua arte? Transitando, assim, da mimese platônica para a aristotélica?

Eu diria que ela abriu “avenidas pela casa”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Poética. Vol.3. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.

DANZIGER, Leila. Saudades de um punhal: Carol D’utra Vaz / Leila Danziger – Rio de Janeiro: Armários Azuis, 2019.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda; coord Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. – 5. ed. – Curitiba: Positivo, 2010.

PLATÃO. A República. [ou Sobre a justiça, diálogo político] – Livro X. Vol.2. São Paulo: Martins Editora Livraria Ltda, 2006.

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4791977P7.Último acesso em 12/11/2019

https://www.armariosazuis.com/. Último acesso em 12/11/2019

[1] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa / Aurélio Buarque de Holanda; coord Marina Baird Ferreira, Margarida dos Anjos. – 5. ed. – Curitiba: Positivo, 2010. p.1396.

[2] http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4791977P7. Último acesso em 12/11/2019

[3] https://www.armariosazuis.com/. Último acesso em 12/11/2019

[4] DANZIGER, Leila. Saudades de um punhal: Carol D’utra Vaz / Leila Danziger – Rio de Janeiro: Armários Azuis, 2019. P.7-8.

[5] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997


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