FAVELICIDADE é uma documentação fotográfica necessária sobre o cotidiano compartilhado por quase 2 milhões de moradores das 763 favelas existentes no Rio de Janeiro. São imagens marcadas pelo desejo de existência e vida. Excesso, abundância, riso solto, choro compulsivo e amores intensos. Sentimento de felicidade e celebração que contagia a cidade afetando todas as relações. Música, dança e religiosidade. Espaço de mistura e território de encontros. Acreditamos que uma representação fotográfica que assuma o desafio de mostrar esse lado humano como um patrimônio cultural carioca tem enorme importância para um novo imaginário estético da cidade.
Fotografamos para conhecer o outro e nesse processo acabamos por nos reconhecer.
Inspirado no livro MALDICIDADE do fotógrafo Miguel Rio Branco, FAVELICIDADE pretende diversificar a produção imagética sobre as favelas, até hoje dominada por uma representação que estigmatiza e discrimina esses territórios populares e seus moradores. Ao trazer registros do dia-a-dia dessas comunidades para o campo da fotografia contemporânea e da documentação expandida, FAVELICIDADE apresenta os territórios populares como lugares de resistência e potência que influenciam a cultura urbana e a própria cidade. Procura desconstruir uma história única feita de narrativas que marcaram as favelas e seus moradores, colocando-os no lugar do “outro”, do estranho, do ameaçador. A escolha das imagens que entrarão no livro foi realizada em um processo de edição coletiva, contando com a colaboração dos fotografados - os protagonistas desse livro.
O projeto apresentado é o recorte de uma extensa documentação sobre o direito à cidade que começou com o registro da tomada do complexo do Alemão (2010) pelas forças militares para instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), seguiu acompanhando o processo em outras comunidades cariocas: Caju, Lins, Rocinha, Manguinhos, Mangueira, Maré e Vidigal por entender que com as ocupações e controle do território pelo Estado começava um processo de urbanização excludente que pretendia transformar a cara do Rio de Janeiro, removendo populações inteiras para longe das áreas de maior interesse imobiliário usando como justificativa a realização dos megaeventos. Acompanhei de perto todo esse processo, apoiando a luta dos moradores do morro da Providência contra as remoções forçadas na região portuária e de outras comunidades espalhadas pelas regiões norte, sul e oeste.
Segundo João Roberto Ripper “A fotografia tem uma coisa muito clara. Se as pessoas não viram, não existe e, portanto, se não é mostrado, não é conhecido, não faz parte do conteúdo de informações que faz o senso crítico coletivo. Isso acontece com o belo, com a dignidade e com as realizações dos segmentos com menor poder aquisitivo. Hoje, tão importante quanto denunciar é mostrar a beleza das populações que sofrem esse enorme processo de censura, de exclusão visual de sua beleza e portanto, de segregação, de estigmatização através da violência, de marginalização e de criminalização.”
CIDADE X FAVELA
Para Robert Park "A cidade é: [...] a mais consistente e, no geral, a mais bem-sucedida tentativa do homem de refazer o mundo onde vive de acordo com o desejo de seu coração. Porém, se a cidade é o mundo que o homem criou, então é nesse mundo que, de agora em diante, ele está condenado a viver. Assim, indiretamente, e sem nenhuma ideia clara da natureza de sua tarefa, ao fazer a cidade, o homem refez a si mesmo."
A definição de cidade como desejo e criação coletiva feita pelo sociólogo norte-americano poderia ser uma referência melhor para a origem das favelas que aquelas encontradas em nossos dicionários, que as definem como assentamento urbano informal, densamente povoado, caracterizado por moradias precárias e miséria, carecendo de serviços básicos de saneamento, abastecimento de água potável, eletricidade, etc. As nossas comunidades sucederam os quilombos urbanos como lugar de resistência e de afirmação cultural. Se tornaram uma alternativa viável na ausência de uma política pública de moradia, mas também se constituíram como lugar de refúgio e liberdade. Um mundo criado por seus próprios habitantes. Obra afetiva de gerações para criar um lugar possível de viver.
Se a relação que construímos com o território é afetiva, as imagens produzidas devem reproduzir esses sentimentos, alimentando e reforçando o imaginário da cidade que queremos construir.
FAVELICIDADE é também panela de pressão, registro de um território marcado por tensões sociais que só cresceram nos últimos 10 anos: ocupações militares, remoções forçadas, protestos e uma guerra continuada ao tráfico que produziu números alarmantes de homicídios e revolta. O livro fala de um lugar que nunca será a vitrine do Rio, mas que precisa ser vista como parte importante da identidade carioca.
Pensado para ser apresentado no formato de fotolivro, tem seu título e narrativa visual inspirados em MALDICIDADE, livro do fotógrafo Miguel Rio Branco. Enquanto MALDICIDADE fala da maldição das grandes metrópoles mundiais, da decadência urbana que cria marginalizados e projeta desesperança. FAVELICIDADE vai tratar de felicidade, vida, cultura e principalmente das trocas que existem na relação favela e cidade, mas também das lutas de resistência durante os anos da era dos Megaeventos.
A fotografia tem a vocação de ser documento e a permissão de ser poesia.
As fotos e a narrativa do livro não se referem a nenhuma favela em especial. Elas são colagens de lugares e de situações que pretendem montar paisagens e acontecimentos comuns a todas. Também não são apresentadas de forma cronológica ou linear. Há um esforço de ressignificar e reinventar o real para ao se aproximar da ficção ganhe carga emocional. Ao assumir a invenção como critério que orienta a produção, também permite-se ao espectador imaginar e inventar junto.
O cotidiano dos territórios populares podem ganhar potência ao serem deslocadas para o campo da arte, para Rancière ”o que a arte pode fazer, eventualmente, é reenviar as pessoas para algo melhor, para uma visão mais sagaz e mais larga do mundo. O que a arte pode fazer é, de certa forma, mudar as hierarquias sensíveis do pensamento, dando as mesmas experiências a pessoas diferentes, que vivem em universos sensíveis muito diferentes.” Idealizar imagens do território é traçar novas relações, construir outras formas de fazer política, estabelecer novos marcos memoriais.
Memória e FAVELA
A memória pode ser caracterizada como o aspecto mais profundo da subjetividade. Segundo o filósofo francês Henri Bergson, quando evocamos algo que vivemos, presentificamos o passado de uma forma criadora. Há sempre uma invenção ao remememorar, visto que, injetamos no passado nossos desejos e afetos do presente em que nos encontramos.
Escolher que memória queremos guardar da favela, além de preservar uma história comum, é também decidir que identidade queremos construir e como projetá-la para o futuro. Para um dos principais pensadores da fotografia atual, Joan Fontcuberta, ”tanto a nossa noção do real quanto a essência de nossa identidade individual dependem da memória. Não somos nada além de memória. A fotografia, portanto, é uma atividade fundamental para nos definir, que abre uma dupla via de acesso para autoafirmação e para o conhecimento."
“Se você fotografar alguém com dignidade, seja na dor ou alegria, você aproxima as pessoas. Mesmo que seja através de uma reflexão crítica, mas você aproxima as pessoas.” – João Roberto Ripper