Crianças brincam em rio no Quilombo São Raimundo, Maranhão
A crise aberta na fotografia por outros modos de representação da realidade, mais ágeis e globalizantes, não esgotou sua potência como forma de expressão e documentação, em especial naquilo que sempre foi seu alvo mais dileto: o humano. Daí a persistência daquilo que se chamou fotografia humanista, corrente que, entre os anos 1930 e 1970, se afastou das pesquisas técnicas e estéticas realizadas na Europa no entreguerras e se aproximou da vida comum, das pessoas comuns. De certa forma, ela continua presente em inúmeros trabalhos de street photography e em projetos humanitários que reiteram o caráter ético do fazer fotográfico. “As pessoas são mais importantes que as fotografias”, resume João Roberto Ripper, um dos mais importantes fotógrafos brasileiros e que tem realizado país afora seus workshops Bem Querer, no qual defende e difunde uma concepção humanista da fotografia (veja a respeito em https://www.facebook.com/acasafotoarte/).
Vazanteiros da comunidade Ilha Pau Preto que moram e trabalham às margens do rio São Francisco
Esse carioca de 1953, que trabalhou por décadas em diversos jornais e revistas, além da pioneira Agência F4, criou, em 2004, o Imagens do Povo, um centro de documentação, pesquisa, formação e inserção de fotógrafos populares no mercado de trabalho, localizado na Maré. “No lugar de eu ir e fotografar a favela, perguntei porque não poderíamos ensinar aos moradores a fotografar”, conta. Foi o início do vitorioso projeto Escola de Fotógrafos Populares que já formou dezenas de fotógrafos tanto da Maré quanto de outras comunidades da região metropolitana carioca, inclusive com estudantes de bairros da Zona Sul carioca atraídos pela qualidade do curso.
E, entre seus alunos e de Dante Gastaldoni, um querido parceiro e professor que participou ativamente do projeto, estão os hoje renomados profissionais Bira Carvalho, Josy Manhães, Ratão Diniz, AF Rodrigues e Luiz Baltar. Este chega a dizer que é difícil definir a importância de Ripper para a fotografia brasileira, devido a tantas atividades que manteve e mantém. “Como dirigente sindical comandou campanhas pelo reconhecimento do direito autoral, pela valorização do trabalho e por valores éticos e solidários na profissão. Foi pioneiro do movimento das agências Independentes (...) Como ativista de direitos humanos fez denúncias que ajudaram na luta contra o trabalho escravo em todo Brasil. Seu trabalho como documentarista humanista é inspiração para toda a minha geração”, comenta Baltar, vencedor do importante prêmio Conrado Wessel de 2016.
Muito além dos estereótipos de moradores de favela mergulhados num universo de pobreza, ignorância e violência, suas fotografias e de seus alunos buscam não estigmatizar seus retratados, mas procuram sempre uma relação solidária, amiga. “É preciso criar um elo entre quem fotografa e quem é fotografado. Por isso é importante esperar e conversar antes de fotografar. Temos de dar tempo ao tempo para que o tempo se volte a nosso favor”, aconselha.
A despeito da quase completa invisibilidade nos meios de comunicação – “Há uma diferença muito grande entre liberdade de imprensa e liberdade de informação”, critica –, as aulas e o trabalho fotográfico de João Roberto Ripper oferecem uma contranarrativa ao discurso de medo e violência imposto pelas emissoras de televisão e jornais impressos. “O poder informa o lugar de cada um na sociedade”, afirma. No lugar de algozes e vítimas, suas imagens oferecem pessoas que vivem, amam e são felizes a despeito de todas condições em contrário. Nunca são representadas como ignorantes, subalternas ou humilhadas de qualquer maneira.
É uma postura que ele encontra ressonâncias na atividade de alguns autores que há décadas são referência no campo das artes visuais e da comunicação, como Henri Cartier-Bresson – “o fotógrafo da esperança, do amor e da liberdade” –, Marc Riboud, Timothy O'Sullivan, Jacob Riis, Lewis Hine, Walker Evans – “ele destruía a foto quando ela atacava a dignidade humana” –, Arthur Rothstein, Josef Koudelka, Sebastião Salgado, Eugene Smith – “o comprometimento com o que faz” – e tantos outros.
Raiz de castanheira queimada no Castanhal do Ubá, Pará
Se a fotografia humanista representou uma busca pela humanidade, após o desastre representado pelo nazismo e a solução final, Ripper soube atualizar essa procura de forma emocionante, em uma obra que medita sobre as relações de poder num Brasil rico em contradições cujas imagens raramente alcançam visibilidade nos grandes meios de comunicação. “A periferia está no centro da fotografia brasileira”, diz.
Veja mais sobre João Roberto Ripper em https://imagenshumanas.photoshelter.com/