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Uma cartografia de identidades e transpessoalidades

A Cartografia, que é ao mesmo tempo ciência e arte, nos oferece representações da realidade, contribuindo para a melhor compreensão do mundo. Trata-se da área do conhecimento humano que se preocupa em estudar, analisar e produzir mapas, cartogramas, plantas e demais tipos de representações gráficas do espaço. É, portanto, um conjunto de técnicas científicas e também estéticas que visa à elaboração de imagens que representem em escala reduzida uma determinada localidade: um bairro, uma cidade, um Estado, um país, um continente, o Globo Terrestre...

O mapa que era considerado o mais antigo de todos é o de Ga-Sur, feito na Babilônia. É um tablete de argila cozida, datado de aproximadamente 2.400 a 2.200 a.C., que contém a representação de duas cadeias de montanhas e, no centro delas, um rio, provavelmente o Eufrates.

Esse mapa foi desbancado por outro, descoberto por arqueólogos em 1993, em uma caverna em Abauntz, na região espanhola de Navarra. Trata-se de um pequeno pedaço de pedra, de 17 x 12 cm, que tem 14.000 anos e talvez seja a primeira representação humana de uma paisagem.

Em face do exposto, pode-se concluir que o universo de convergência entre a cartografia científica e a obra de arte ocorre no plano da representação. Mas a arte fica em vantagem: enquanto a cartografia está presa a normas, a arte é território de pura liberdade, aberta ao gestual espontâneo, ao acaso, ao imprevisto, à participação do observador.

A pintura que abordamos neste texto, Identidade Cantagalo, assinada pelo artista plástico e designer Antonio Breves, pode ser vista como emblemática de obra de arte que se materializou como uma proposta eminentemente cartográfica. Mas, como é arte, ultrapassou as fronteiras do convencional.

O quadro nasceu em uma cerimônia de cunho político: Breves foi convidado para participar da solenidade de conclusão dos trabalhos de pré-titularização de propriedades situadas na comunidade do Cantagalo[1] em 2009, numa iniciativa do Instituto Atlântico, do Projeto de Segurança de Ipanema e da Associação de Moradores do Cantagalo, na presença do então Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame e do governador Luís Fernando Pezão.

Relata o artista: “Fui então, em busca da ideia de pertencimento e identidade da comunidade. Elaborei junto com as crianças uma imagem de identidade e compromisso: uma impressão digital ampliada, saída do dedinho de um dos meninos locais, que foi impressa sobre o mapa dos lotes prometidos pelas autoridades aos moradores. Inseri no quadro uma seta branca apontando para um norte imaginário. Em seguida, providenciei a impressão colorida de todos os outros dedinhos das crianças locais, molhados em tinta vermelha, margeando na tela a promessa cerimonial das autoridades, em forma de brincadeira”.

Nesta perspectiva, sobre o mapa de parte do território de Cantagalo, o artista plasmou uma impressão digital gigante de uma única criança que representava a identidade de todos os demais moradores, ao lado de dezenas de outras impressões digitais de crianças, todas em tamanho real, e também ampliou o tamanho da seta que costuma indicar o norte geográfico em mapas terrestres. Um jogo lúdico com o conceito de que rege toda imagem cartográfica, transportando o olhar do observador do pequeno ao grande e vice-versa, tendo como resultado a transformação da na tela em estímulo à . Quem contempla essa tela é instigado(a) a refletir sobre questões como propriedade coletiva e privada, marcas territoriais, identidade individual e coletiva, comunidade pobre versus concessões do poder político. Assim ficam eliminadas as fronteiras entre a arte que é mera representação do real e a arte que é politicamente ativa, que se configura como uma de ideias-força, que partem da subjetividade do pintor para adentrar o terreno das energias coletivas, onde florescem as . Ao transformar sua pintura numa , convidando as crianças a deixarem suas marcas individuais e intransferíveis sobre a tela, Antonio Breves também reforça o debate, mais do que nunca pertinente, sobre os conflitos entre o regime já obsoleto da democracia representativa e o regime desejado, mas de difícil implantação, da democracia participativa.

[1] Cantagalo-Pavão-Pavãozinho é um conjunto de favelas situado na fronteira entre os bairros de Ipanema e Copacabana, na Zona Sul da cidade o Rio de Janeiro. Possui cerca de 5.000 moradores. Por se situar em um morro próximo ao mar, possui uma das vistas mais privilegiadas da cidade. O conjunto de favelas, apesar de se situar em uma das zonas mais nobres da cidade, possui graves problemas sociais, como pobreza, violência e tráfico de drogas.


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