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A marginalidade da estética - A cidade revelada pela inventividade do nomadismo urbano


Rosentalerplatz / Berlin-Mitte Fotos: Stanley Vinicius

A cidade libera espaços [...], que já não são da ordem da organização mundial, mas de um revide que combina o liso e o esburacado voltando-se contra a cidade: imensas favelas móveis, temporárias, de nômades trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. [...] Força condensada, potencialidade de um revide?

DELEUZE E GUATTARI, 188,189, 2008

O projeto de pesquisa intitulado “A marginalidade da estética” parte da suposição de que boa parte das intervenções ilegais inventadas pelas diferentes formas de nomadismo urbano acionaria espaços de revide e de problematização da ordem territorial criadas para atender fundamentalmente aos interesses do Estado-nação e do capital internacional.

De acordo com esta pesquisa, a ação marginal do nomadismo provocaria reterritorializações temporárias da dimensão política da experiência urbana sistematicamente suplantada pelo discurso racionalista e da mercantilização.

Deste modo, revidar a lógica do Estado e do capital significa subverter a lógica do esteticismo, do historicismo, da homogeneização e gentrificação galopante que assola nossas cidades.

De acordo com a pesquisa realizada em Berlin, Rio de Janeiro e Salvador intervenções criadas pelo nomadismo urbano são partes de um complexo de práticas e experimentações desenvolvidas cotidianamente por indivíduos ou grupos segregados, excluídos ou refratários á estrutura hegemônica.

Acreditamos que se a intervenção do vagabundo, do ocioso, do errante e do morador de rua no espaço público destorcem signos, interrompe marcações e contestam fórmulas de consenso fabricado, produzir cartografias móveis dessas experimentações efêmeras poderia trazer a tona à importância política do revide enquanto forma de luta e participação.

Ao que parece, afrontar o racionalismo e desmontar estratificações historicamente construídas pelos poderes constituídos, não só multiplica linhas de fuga ou de resistência como também mostra a importância singular das situações urbanas criadas por um nomadismo estético e político que aponta para modos autônomos e coletivos de auto-organização e coinvenção da cidade.

Figura A

Imediações da Praia da Barra /SSA

Figura B

Largo do Porto da Barra

O rasante crescimento populacional, e em especial o aumento do número de vagabundos, pedintes e ociosos; bem como à proliferação de moradias insalubres e todos os problemas advindos da revolução industrial justificaram a emergência e a consolidação do discurso higienista que passa a apresentar o nômade e o vagabundo como o indesejado e a cidade espontânea como um corpo doente e necessitado de uma intervenção.

Surge ai um novo contexto racionalista alimentado pelo florescimento de novas especializações técnico-científicas cada vez mais dependentes de investimentos atrelados ao capital e a competitividade global. Uma situação que torna as metrópoles cada vez mais condicionadas á processos gerais de normalização, privatização , ordenação e estetização territorial.

Embora as grandes transformações exigidas pela competividade global continuem modificando de forma drástica e com absoluto desrespeito a vida e às necessidades essenciais das chamadas minorias marginalizadas, a vida nas cidades, parece ser exatamente em meio a essas minorias que formas de revide e resistência se manifestam.

De acordo com Santos (2006) a ampla produção de racionalidade técnica e científica estaria fortemente comprometida com uma produção ilimitada de escassez; a mesma escassez de recursos e de qualidade de vida a que são relegadas aqueles indivíduos ou grupos sociais que nunca dispuseram de meios de acesso à modernidade material.

Segundo o geógrafo, seria exatamente nas brechas dessa racionalidade, nos espaços geridos pela escassez e exclusão que uma espécie de contrarracionalidade, ou adaptação criativa se faria sentir.

Segundo esta pesquisa, para além da adaptação criativa sinalizada por Santos, existe ainda a resistência e a insubmissão que multiplicar formas singulares de revide e inventividade urbana.


Figura C

Rua do Resende / Rio de Janeiro

Figura D

Figura D

Rosentalerplatz / Berlin-Mitte



Naturalmente que situações de revide e de resistência não se limitam apenas a intervenções produzidas por sem teto ou moradores de rua. A ação desses grupos ou indivíduos em espaço público sinaliza apenas uma pequena fração de um rizoma formado por redes de experiências e práticas marginais que englobam também pichações, camelotagens, ocupações, favelizações e todo um universo de práticas subversivas criadas na escassez, na ilegalidade e na exclusão.

Situações que parecem surgir no espaço de modo aleatório e indeciso, num movimento de aparente contrarracionalidade (Santos, 2006).

São dessas redes que parecem surgir zonas de fabulações e de autonomia temporária abrindo espaço para o inusitado, para imagens instáveis, para paisagens efêmeras, para situações móveis e estranhas, para movimentos, nuanças e ritmos muitas vezes contraditórios e perturbadores.



Figura E

Rua Alice / Rio de Janeiro



Figura F

Largo da Barra/ Salvador



São desses processos baseados em relações sociais, e que surgem de relações de força transformadas em campo de dissenso e de conflito, que procuro me aproximar. Acercar-me da ação diária de indivíduos ou grupos marginalizados, de sua contínua invenção de territórios de conflitos nitidamente inscritos nos interstícios da metrópole, é o que me possibilita produzir cartografias móveis desses sinais de revide e de resistência.

O exercício da cartografia me leva enxergar nessas práticas subversivas dois grandes movimentos: o desmascaramento de estruturas historicamente construídas pelo Estado e pelo capital e a permanente problematização dos padrões urbanos de consenso fabricado, ou seja, as estratégias burguesas de despolitização e controle dos espaços públicos urbanos.


Figura G

Rua das Laranjeiras / Rio de Janeiro

Figura H

Rua Alice / Rio de Janeiro



Nesse contexto, o dissenso e o conflito, produzido por indivíduos ou grupos marginalizados reterritorializariam, mesmo que de forma precária e instável, não apenas a dimensão política, mas também a dimensão estética, ambas deliberadamente sequestradas dos espaços públicos.


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